
O romance foi escrito para as crianças, mas Neil Gaiman é danado porque é perfeitamente ideal para nós, adultos.
...seu pé escorregou, e no momento seguinte, tchbum! Estava com água salgada até o queixo... No entanto, ela logo entendeu que estava na poça de lágrimas que tinha chorado. "Gostaria de não ter chorado tanto!" disse Alice, enquanto nadava ao redor, tentando encontrar o seu caminho. "Vou ser castigada por isso agora, pelo visto, morrendo afogada nas minhas próprias lágrimas! Vai ser esquisito, com certeza! Mas tudo é esquisito hoje.”
Falando assim, mal sabia a Alice de Lewis Carroll que estava colocando em simples palavras o enigma da infância encerrado dentro de cada um de nós: não apenas a pressão do mundo adulto para crescermos sábios e fortes, como também a estranheza de um mundo esquisito. Reutilizando essa idéia de forma original, Neil Gaiman em 2002 escreveu sua melhor versão moderna da Alice no País das Maravilhas: Coraline e o Mundo Secreto. E que vai para a telona. Assim como Stardust, Coraline promete. A história, claro, é sombria que deve ser vista por crianças não comuns, crianças que não se hipnotizam pela televisão e também para a criança perdida dentro de cada um de nós, que no decorrer da adolescência e da vida adulta acabou se perdendo na burocracia da responsabilidade.
A história começa com Coraline mudando-se com seus pais para uma casa reformada. Nela, descobre uma porta que às vezes dá para uma parede de tijolos e às vezes para um outro mundo “quase” igual ao seu. Nesse novo e alternativo mundo, Coraline poderia aparentemente ser bem mais feliz que na vida com que estava acostumada. Seus brinquedos têm vida própria, pode-se comer batatas fritas toda hora, sempre tomar refrigerante no lugar de água e ir dormir a hora que quiser. Além disso, nesse mundo os pais de Coraline podem e querem brincar com ela todo o tempo. O único porém é que, no lugar de olhos, eles têm botões, e para Coraline ficar ali, deve também deixar sua querida outra mãe costurar um botão em cada um dos seus. Meedo!...rs. Para a menina, tudo é questão de escolha, até que sua outra mãe aprisiona seus pais verdadeiros, fazendo com que ela fique sozinha em sua verdadeira casa e sua única opção é voltar para o mundo atrás da parede de tijolos e resgatar seus pais.
Lidando com temores infantis, e muitas vezes adultos, como solidão, tristeza e indecisão, Gaiman vai montando a história como uma cantiga de ninar que aos poucos se transforma numa pesada e violenta canção noturna. O cara tem o dom.
O ponto alto da narrativa de Gaiman é a distância necessária da Coraline de seus pais ocupados. A história me faz pensar sobre os primeiros meses de vida da minha filha que eu perdi quando não a via crescendo por estar ocupada demais, por ser responsável demais ou por ser, simplesmente, adulta demais.
A Alice tem o gato lilás listrado todo pomposo. A Coraline tem o Gato Preto. Claro! E não poderia ter sido diferente.
Próximo do final, um dos personagens diz a Coraline: “E se você fizer tudo o que jurou que faria? E daí? Nada mudou. Você vai pra casa. Vai se entediar, vai ser ignorada. Fique aqui conosco. Nós te ouviremos, brincaremos e riremos com você. Sua outra mãe construirá mundo inteiros para você explorar e rasgar a cada noite quando tiver acabado. Cada dia será melhor e mais brilhante do que o anterior. Lembra-se da caixa de brinquedos? Não seria melhor o mundo construído daquele jeito e somente para você?...Se ficar aqui, terá tudo o que quiser!” É nesse ponto que Gaiman é genial, porque propõe à Coraline e a todos nós, uma escolha entre sermos deuses e sermos humanos, tendo de um lado a realização completa de todos os nossos desejos, e do outro, a nossa vida como sempre a vivemos, com todos os seus pequenos grandes momentos de alegrias, dores, amizades, lágrimas, vitórias, tombos, desapontamentos e amores. A pergunta que nos cutuca em nossas mentes é: “O que nós escolheríamos?” Coraline não pestaneja ao responder: “Você realmente não entende não é? Eu não quero tudo o que eu quiser! Ninguém quer. Não realmente. Que graça teria ter tudo o que se deseja? Em um piscar de olhos e sem o menor sentido? E daí?... É claro que você não entende. Afinal você é apenas uma cópia ruim de um ser humano. Talvez nem isso.” Quanto a nós, certamente escolheríamos o mesmo.
Enfim, continuaríamos a ser nós mesmos com nossas escolhas ou, vez ou outra, daríamos uma espiada atrás da porta que dá para a parede de tijolos. Talvez algum dia, ou em alguma noite, venhamos a encontrar um longo e escuro corredor que nos levará aos sonhos e aos desejos perdidos de nossa infância. Concordo em número, gênero e grau.
Delicie-se por enquanto com a leitura ou com o trailer abaixo, enquanto a história não chega na nossa telona.
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